|
Lendas do Sul
A salamanca do Jarau
VIII
Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira no chão tendo por porta um couro
—, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama,
cerda ou algum tambeiro; e como vinha de garganta seca e a cabeça atordoada mandou botar
uma bebida.
Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa e o câmbio que veio, tanto,
que pasmou, olhando para de, de tão desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que
chamasse seu...
E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro da guaiaca, sentindo-lhe o peso e o sonido
afogado.
Calado, montou de novo, retirando-se.
No caminho foi pensando nas todas as cousas que carecia e que iria comprar. Entre aperos e
armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que
pretendia, andava tudo por uma mão-cheia de cruzados e a si próprio perguntava se aquela onça
encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas, tantas como as
que precisava, e mais ainda, outras e outras que o seu desejo fosse despencando?!...
Chegou ao posto, e como homem avisado, não falou do que fizera durante o dia, apenas do boi
barroso, que campeou e não achou; e no seguinte, logo cedo saiu a empeçar a prova do
prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo e bainha
com anéis de prata; e mais as esporas e um rebenque de argolão.
Toda a compra passava de três onças.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o carrinho, piscando os
olhos, a respiração atropelada, todo ele numa desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau
remendado começou a gargantear a guaiaca... e caiu-lhe na mão uma onça… e outra… e outra!...
As quatro, que por agora eram tão de jeito!...
Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém sim de uma a uma, as
quatro, de cada vez só uma…
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, não falou do acontecido.
No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e de prateleiras mais variadas. Já
levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e muito em ordem foi encomendando o aparte das
cousas, tendo cuidado em não querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de
falhar a onça, recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não ‘sendo obrigado a pagar
estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados pra menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a gargantear a guaiaca, e logo
lhe foi caindo na mão uma onça... e segunda... outra… e quarta, mais outra, e sexta... e assim de
uma em uma, as quinze necessárias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão as moedas conforme vinham elas minando
da mão do pagador, e quando estavam todas disse, entre risonho e desconfiado:
— Cuê-pucha!... cada onça das suas parece que é um pinhão, que é preciso descascar à unha !...
No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma quadrilha,
apartada por ele, à sua vontade, e como facilitou o preço, fechou-se o trato.
Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os animais; no apinhado de
todas, Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; com
um sovéu fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se
ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete.
Olho de campeiro, não errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor, foram apartados,
custando quarenta e cinco onças.
E enquanto a tropa verdejava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma figueira que havia na
beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando, começou a
gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, onça por onça, uma, três, seis, dez, dezoito, vinte e
cinco, quarenta, quarenta e cinco!...
O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e disse:
— Amigo! As suas onças parecem talas de jerivá, que só cai uma de cada vez!...
Depois desses três dias de prova Blau acreditou na onça encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças, aquerenciado.
O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento.
Ai o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma atrás
da outra, sempre uma a uma!...
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que
não se dá duas ao mesmo tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando, sobre a
tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça trás onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por ele, gaúcho despilchado de
ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas, afrontar os abonados, assim do pé para a mão... E
também era falado o seu esquisito modo de pagar — que pagava sempre, valha a verdade — só
de onça por onça, uma depois de outra e nunca, nunca ao menos duas, acolheradas!...
Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver como aquilo era; e para
todos era o mesmo mistério...
Mistério para o próprio Blau… muito rico… muito rico… mas de onça em onça, como tala de jerivá, que
só cai uma de cada vez... como pinhão da serra, que só se descasca de um a um!...
Mistério para Blau, muito rico... muito rico... Mas todo o dinheiro que ele recebia, que entrava das
vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro,
desaparecia como desfeito em ar...
Muito rico… muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para gastar no que lhe
parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começavam a pingar;... mas nenhuma das
que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se como água em tijolo quente…
|