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Lendas do Sul
A salamanca do Jarau
IX
Então começou a correr um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele tinha parte com o
diabo, e que o dinheiro dele era maldito porque todos com quem tratava e recebiam das suas
onças, todos entravam, ao depois, a fazer maus negócios e todos perdiam em prejuízos
exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida.
Ele comprava e pagava a vista, é certo; o vendedor contava e recebia, é certo... mas o negócio
empreendido com esse valor era de prejuízo garantido.
Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido que ele guardava e rondava, sumia-se como
um vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por si mesmo...
O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga arrumada na salamanca
do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita.., e que lá é que se jogava a alma contra a sorte...
E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros, mais sorros, pra lá
tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaços, iam à meia-noite, outros ainda ao primeiro cantar
dos galos...
E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais escondido, sucedeu que como
sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar coa salamanca, ou sem topete
para, na escuridão, quebrar aquele silêncio, chamando o santão, num grito alto...
No entanto Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso...
Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros,
que uivavam, às vezes um, às vezes todos...
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada compravam-lhe e
negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam campo para não pararem nos seus galpões...
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o
ralava e esmorecia...
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho nos bambuzais e nas
restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado xucro que disparava, e não fez caso; foi
trepando. Mas não era, não, gado xucro espantado, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era
gente, gente que se escondia uns dos outros e dele...
Assim chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como chegou, deu de cara
com o vulto de face branca e tristonha, o sacristão encantado, o santão.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como da outra:
— Laus’ Sus-Cris’ !...
— Para sempre, amém! — respondeu o vulto.
Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a onça de ouro, dizendo:
— Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade,
mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de
onças!... Adeus! Fica-te com Deus, sacristão!
— Seja Deus louvado! — disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas, como numa reza. —
Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele quebraste o encantamento!...
Graças! Graças! Graças!...
E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome Santo, neste
mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor do
Cerro do Jarau tremeu de alto a baixo, até às suas raízes, nas profundas da terra, e 1ogo, em
cima, no chapéu do espigão,.apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se, uma
língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça negra, em rolos
grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas, sem rumo feito,
porque a fumaceira inchava e desparramava-se no ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se,
enroscando-se, em altos e baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra
e se desmancha como água passada em regador...
Era a queima dos tesouros da salamanca, como dissera o sacristão.
Sobre as caídas do Cerro levantou-se um vozeio e tropel; eram os maulas que andavam
rastreando a furna encantada e que agora fugiam, desguaritados, como filhotes de perdiz...
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