Lendas do Sul
A salamanca do Jarau
IV
— Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre um mar que os meus
nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que
outros chamam o — carbúnculo — e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros
escondidos dentro da casca do mundo...
Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes hei escapado das mãos
ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha
cabeça transparente...
Tu, não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água
na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento.
Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa e irás andando e me
levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito, do mais, do tudo!...
A teiniaguá que sabe dos tesouros sou eu, mas sou também princesa moura...
Sou jovem... sou formosa…, o meu corpo é rijo e não tocado!…
E estava escrito que tu serias o meu par.
Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não es-conjurar...Senão, serás ligado ao meu
flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente,
guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu
lhe carrearás por via dessas!…
Se a cruz do teu rosário não me esconjurar...
Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis….
E foi se adelgaçando no silêncio a cadência embalante da fala induzidora...
A cruz do meu rosário...
Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira… e quando tenteei a
última... e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador... fui
levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, em salvatério... na altura do seu coração… na
altura da sua garganta... da sua boca... na altura dos... -E aí parou, porque os olhos de amor, tão
soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!...
Parou… e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o
aroma sai da flor que vai apodrecendo...
Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a
minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém, e todo me estortegava e
doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus
pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os meus....
Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício; e eu fui,
busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores; e trouxe-o,
transbordante, transbordando...
De boca para boca, por lábios incendiados o passamos... E embebedados caímos abraçados.
Sol nado, despertei: estava cercado pelos santos padres.
Eu descomposto; no chão o copo, entornado; sobre o oratório, desdobrada, uma charpa de seda,
lavrada de bordaduras exóticas, onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma
estrela... E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel… e até no ar farejaram cheiro
mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e cabelos repuxados.
Dentro das paredes do segredo não havia fritos nem palavras grossas; os padres remordiam a minha
alma, prometendo o inferno eterno e espremiam o meu arquejo, decifrando uma confissão...;
mas a minha boca não falou..., não falou por senha firme da vontade, que não me palpitava confessar
quem era ela e que era linda...
E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das riquezas, que eu queria só pra
mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse senão meu, inteiro e todo
Mas por senha da vontade a boca não falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado
com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira.
No adro e no largo da igreja, o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo
e a misericórdia para a minha alma.
O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre alabardas e lanças, e um cortejo
moveu-se, compassando a gente d’armas, os santos padres, o carrasco e o povaréu.
Dobrando a finados… dobrando a finados...
Era por mim.
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