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Lendas do Sul
A salamanca do Jarau
V
E quando, sem mais esperança nos homens nem no socorro do céu, chorei uma lágrima de adeus
à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e
soberano , como em rocha dura serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma
raiz que não quer morrer!...
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito. Subiu aos olhos feita em lágrima e
ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade rastreada sem engano... ; parece, porque
nesse momento um ventarrão estourou sobre as águas da lagoa e a terra tremeu, sacudida, tanto,
de as árvores desprenderem os seus frutos, de os animais estaquearem-se, medrosos, e de os
homens caírem de cóc'ras, agüentando as armas, outros, de bruços tateando o chão....
E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma vozes guaranis,
esbravejando se soltasse o padecente.
Para trás do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas secas levantadas,
continuava o sino dobrando a finados… dobrando a finados!…
Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma; em roda,
boquejando, chinas, piás, índios velhos, soldados de couraça e lança, e o alcaide, vestido de
samarra amarela com dois leões vermelhos e a coroa d’el-rei brilhando em canutilho de ouro…
A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro ver: e o palmital da
lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isto, que era grande e sozinho cada um
enchia e sobrava para os olhos limpos dum homem, tudo isso eu enxergava junto, empastalhado e
pouco, espelhando-se na lágrima suspensa, que se encrespava e adelgaçava, fazendo franjas
entre as pestanas balançantes dos meus olhos de condenado sem perdão...
A menos de braça, estava o carrasco atento no garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito, lindo,
belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá, onde
reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem
outros se não viram!....
E por certo por essa força que nos ligava sem ser vista, como naquele dia em que o povo sesteava
e também nada viu... por força dessa força, quanto mais os padres e alguazis ordenavam que eu
morresse, mais pelo meu livramento forcejava o irado peito da encantada, não sei se de amor
perdida pelo homem, se de orgulho perverso do perjuro, se da esperança de um dia ser humana...
O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha dos ranchos, sem
queimá-los... ; as crianças de peito soltaram palavras feitas, como gente grande...; e bandadas de
urubus apareceram e começaram a contradançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar das
penas contra o vento..., a contradançar, afiados para uma carniça que ainda não havia porém que
havia de haver.
Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santíssimo e borrifaram de água benta o povo
amedrontado; e seguiram, como num propósito, encomendando a minha alma; o alcaide levantou
o pendão real e o carrasco varejou-me sobre o garrote, infâmia de minha morte, por ter tido amores
com uma mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira...
Rolou, então, sobre o vento e nele foi a lágrima do adeus, que a saudade destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, tão dilatado e monstruoso... e rasgou-se cerce em
um sangão medonho, entre largo e fundo… e lá no abismo, na caixa por onde ia já correndo, em
borbotão, a água lamenta sujando as barrancas novas, lá, eu vi e todos viram a teiniaguá de
cabeça de pedra transparente, fogachando luminosa como nunca, a teiniaguá correr, estrombando
os barrocais, até rasgar, romper, arruir a boca do sangão na alta barranca do Uruguai, onde a
correnteza em marcha despencou-se, espadanando em espumarada escura, como caudal de
chuvas tormentosas!…
A gente levantou pro céu um vozear de lástimas e choros e gemidos.
— Que a Missão de S. Tomé ia perecer… e desabar a igreja... a terra expulsar os mortos do
cemitério… que as crianças inocentes iam perder a graça do batismo… e as mães secar o leite... e
as roças o plantio, os homens a coragem...
Depois um grande silêncio balançou-se no ar, como esperando...
Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si próprio, perpassou a altura das cousas, e lá em cima,
cortou no ar turvado a Cruz Bendita!… O padre superior tremeu como em terçã e tartamudo e
trôpego marchou para o povoado; os acólitos seguiram, e o alcaide, os soldados, o carrasco e a
indiada toda desandou, como em procissão, emparvados, num assombro, e sem ter mais do que
tremer, porque ventos, fogo, urubus e estrondos se humilharam, fenecendo, dominados!...
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmos ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que iam minguando, em
retirada… mas também ouvindo com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso da
teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se
alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do
meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades… mas o faro
do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua
da.minha boca estava seca, de agonia, dura de terror, amarga de doença… mas a língua do
pensamento saboreava os beijos da teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa
de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me
prendiam por braços e pernas… mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da
encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio,
que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fúria...
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando à barranca do Uruguai; tanto como as
gentes, lá, iam acabando as orações para alcançar a demência divina, ia eu começando o meu
fadário, todo dado à teiniaguá, que me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo
seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem !...
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso de remorsos
na alma passei o rio para o lado do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e
juntos fizemos então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de
todas as salamancas dos outros lugares.
Para memória do dia tão espantoso lá ficou o sangão rasgado na baixada da cidade de Santo
Tomé, desde o tempo antigo das Missões.
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