Lendas do Sul
A salamanca do Jarau

III

É certo:

não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve, paisano.

No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa...

A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus… O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado...

A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...

Mas assim era o fado…, tempo e homem virão para me libertar, quebrando o encantamento que me amarra, duzentos anos hão de findar; eu esperei no entanto vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido que não chora...

Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão...

Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar,.dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a finados... Eu era o sacristão.

Um dia na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração.

Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fumaça piedosa. E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado...

Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.

A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá em baixo, dentro da terra, é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas...

Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa..., ferver, sem fogo que se visse!

A mão direita, pelo costume, andou para fazer o “Pelo-Sinal”… e parou, pesada como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a lembrança dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo… e tanger o sino em dobre... e chamar o padre superior, tudo para esconjurar aquela obra do inferno… e nada fiz... nada fiz, sem força na vontade, nada fiz... nada fiz, sem governo no corpo!...

E fui andando, como levado, para de mais perto ver, e não perder de ver o espantoso....

Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante continuou retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes que morrem sem gritar...

Era no fim de um lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os dias as mulheres irem para a lavagem; e quando eu estava na beira da água, vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior que o da luz a pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente, e que luzia desde o fundão da lagoa e varava a água barrenta…

E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem ameaça veio andando para mim a sempre escapada maravilha..., maravilha que os que nunca viram juravam ser — verdade — e que eu, que estava vendo, ainda jurava ser — mentira!

Era a teiniaguá, de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase chegou de teimar em agarrá-la.

Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniaguá veio-se me chegando, deixando no chão duro um rastro d’água que escorria e logo secava, do seu corpinho verde de lagartixa engraçada e buliçosa...

Lembrei-me — como quem olha dentro duma cerração —, lembrei-me do que corria na voz da gente sobre o entangüimento que traspassa o nosso corpo na hora do encantamento: é como o azeite fino num couro ressequido....

Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na água viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o quanto agarrei dela e enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a teiniaguá que, da vereda que levava, entreparou-se, tremente, firmando nas patinhas da frente, a cabeça cristalina, como curiosa, faiscando...

De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de cegueira, assentei no chão a guampa e preparando o bote, num repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela!

Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e a cabeça sonando como um sino de catedral...

Corri para o meu quarto, na Casa-Grande dos santos padres. Entrei pelo cemitério, por detrás da igreja, e desatinado, derrubei cruzes, pisoteei ramos, calquei sepulturas!…

Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu.

Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.

Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...

Nos livros que eu lia, estes todos eram os mais ricos que se conhecia.

E eu, agora!...

E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e esquisita: eu via, com os olhos, os pensamentos diante.deles, como se fossem cousas que se pudesse tentear com as mãos...

E foram se escancarando portas de castelos e palácios, onde eu entrava e saía, subia e descia escadarias largas, chegava às janelas, arredava reposteiros, deitava-me em camas grandes, de pés torneados, esbarrava-me em trastes que nunca tinha visto e servia-me em baixelas estranhas, que eu não sabia para o que prestavam...

E foram-se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no azul das distâncias, e ainda lindando com outras estâncias que também eram minhas e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas...

E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato virgem...

E atulhava de planta colhida — milho, feijão, mandioca — os meus paióis.

E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata; dependuradas na galhação de cem cabeças de cervos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas de diamantes, brancos como gotas d’água filtrada em pedra, que os meus escravos — saídos mil, chegados dez —, tinham ido catar nas profundas do sertão, muito para lá duma cachoeira grande, em meia-lua, chamada de Iguaçu, muito pra lá doutra cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra...

Tudo isto eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal que respirava um descanso, de novamente, de nova-mente pegava a contar, a pesar, a medir....

Tudo isto eu podia ter — e tinha de meu, tinha! —, porque era o dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa, fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de bronze!...

Aqui ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde...

Pela primeira vez não fui eu que toquei; seria um dos padres, na minha falta.

Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.

Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho precisava alimento,

Tranquei portas e janelas e sai para buscar um porongo de mel de lixiguana, por ser o mais fino.

E fui; melei; e voltei.

Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro.

E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa e libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os pés se me enraizaram, os sentidos do rosto se arriscaram e o coração mermou no compassar o sangue!...

Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!…

Que disse:

Continua...

Lendas do Sul       Volta ao início da página