|
Contos gauchescos
Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano
- Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezigue. Já senti a ardentia das areias desoladas do
litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei
as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi
malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da
derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas
temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupaceretã, o
nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus...
- Saudei a graciosa Santa Maria, fagueira e tranqüila na encosta da serra, emergindo do verde-negro da
montanha copada o casario, branco, como um fantástico algodoal em explosão de casulos.
- Subi aos extremos do Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a
merencória Soledade, flor do deserto, alma risonha no silêncio dos ecos do mundo; cortei um formigueiro humano
na zona colonial.
- Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão
vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade.
- Vi a colméia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e
as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes
olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a
impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a
raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela
integração da Pátria comum, agora abençoada na paz.
- E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu
constante guia. e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos
os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de furriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e
de marinheiro improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré.
Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando
dentro do tronco cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas...
Genuíno tipo — crioulo — rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e
ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória
de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco
dialeto gauchesco.
E, do trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos
ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lho
vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-a-pêlo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida,
entre o Blau — moço, militar — e o Blau — velho, paisano —, ficou estendida uma longa estrada semeada de
recordações — casos, dizia ?, que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende, ao sol,para
arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.
Querido digno velho!
Saudoso Blau!
Patrício, escuta-o.
|