|
Casos do Romualdo
O tatu-rosqueira
Já em rapaz eu ouvira falar numa raça de tatus-rosqueira, porém, punha minhas dúvidas nessas histórias.
Passaram-se os anos caminhei muito, muito, aconteceu-me muito, mas de tatu-rosqueira, nada!
Pois dessa feita, no Rincão das Tunas, vi; do outro lado do rio Camaquã, com estes, que a terra há de comer, vi... e se me
fosse contado não acreditaria.
Periga a verdade, mas lá vai, e, demais, estavam presentes o capitão Felizardo, já
falecido, o licenciado Silvinha (que perdi de vista), além dos peões, sem falar nos cachorros, por sinal bons tatuzeiros.
É sabido que as jararacas andam sempre em casal e que se alguém mata uma pode também matar a outra, no mesmo lugar,
porque a viúva vem pelo rastro da companheira; se se carrega a primeira, por exemplo, para perto de casa,
é contar que a outra aí vem dar; quer dizer, o bicho acompanha o seu defunto, ou seja pelo faro, ou pela dor da saudade,
com os olhos da alma...
Sabe-se também - isso eu vi, vezes e vezes! - que o lagarto conduzido pela cauda, semimorto ou semivivo (há diferença
entre estes estados de saúde), quando menos se espera, quebra o rabo e escapa-se.
A perdiz, finge de morta: fecha os olhos, afrouxa o pescoço, reina as asas e... zuct! de repente apruma-se e desfere o vôo.
O zorrilho...
Esta pequena divagação, que pode parecer maçante, é necessária e vem apenas
provar que todo animal tem um instinto muito particular para certas aflições em que se encontra.
Era por uma bonita noite de luar. Estávamos mateando e pitando; conversa vai, conversa vem, quando o major Felizardo
lembrou que podia divertir-nos proporcionando-nos uma caçadita aos tatus.
- E tatu-rosqueira, então, que é praga! ... concluiu o major.
A este dito, saltei.
- Pois há? ... inquiri.
- Xi! assim!...
E o major juntou em molho os dedos das duas mios, e assobiou comprido.
Aprestamo-nos e saímos rumo do rincão.
De chegada soltamos os cachorros, e daí a um quase-nada já lhes ouvíamos o
ganiçado. Começamos a bater as toca. Aquilo foi rápido.
Havia mesmo muito tatu!
Cachorro farejava, cavava na entrada da toca, e nós já rente, de enxada, dá-le que dá-le!
Eu é que tive a sorte de descobrir o primeiro tatu; o primeiro tatu, não, o primeiro rabo de tatu. E no que o descobri, agarrei-o.
Tironeei, tironeei, e nada, o bicho não vinha; já ia meter o dedo... sabem, heim?... quando o licenciado Silvinha gritou-me:
- Não faça isso, Romualdo... destorça a rosca do rabo!
- Quê?
- Sim, e para a esquerda, a modo de parafuso inglês!
Sem ter consciência do que fazia, às mãos ambas dei umas quantas voltas para a esquerda, e qual não foi o meu espanto
quando senti que efetivamente aquilo cedia, afrouxava, desatarraxava-se! ... E fiquei com o rabo na mão... sem o tatu!
Pelos outros lados os companheiros andavam na mesma faina. Algo desapontado, indaguei do licenciado:
- E agora?...
- Passe a outro. Guarde esse rabo aí no saco; daqui a pouco você verá o resto!
Aquilo era curioso, passei a outra cova, a mesma manobra: outro rabo, no saco; outra e outra, e assim porção delas.
A certa altura o tenente-coronel deu ordem de parar, pois não poderíamos
transportar toda a caçada; o saco estava cheio a mais de meio.
Eu estava desconfiado e furioso, mas disfarçando, achava esquisito vir ao mato
caçar tatus e só levar-lhes as caudas...
Mas o coronel Felizardo fez um sinal e logo nos arrolhamos em volta do saco; fez-se silêncio e daí a pouco começou
a tatuzada a sair das tocas - desrabados todos - e vieram se chegando para o saco, focinhavam nele e ficavam quietos,
como viúva velha chorando na cova de marido novo.
Ai então é que era pegar e sangrar tatu! Foi uma senhora matança! Fizemos umas
quantas enfiadas e voltamos para casa vergando ao peso da caçada. Eu, por mim, confesso, estava atônito!
Em caminho é que o brigadeiro Felizardo me foi contando a cousa pelo miúdo
- Romualdo, você conhece o tatu peludo ou de rabo mole, o bola, o guaçu e outros; mas parece que este, nunca viu...
- De ouvido, sim!
- Ora! ouvir falar é uma cousa, ver é outra. Este tatu tem o rabo como uma rosca, por isso se chama rosqueira;
caçá-lo é facílimo: descoberta a toca, basta poder agarrá-lo pela cauda e em vez de puxar destorcê-la e depois levá-la para
um pouco distante naturalmente o rosqueira sente falta do peso do rabo e pelo faro vai em busca, acha-o e
começa logo a cavar no chão um buraco estreito e fundo, entra então com o focinho a dar voltas e mais voltas à cauda
solta, e tanto trabalha que fá-la cair de ponta para baixo no buraco que preparou: então, chega-lhe terra e vai-o enchendo, de
forma que a cauda pode ficar fincada corno uma estaca, e quando ele sente que está firme, senta-se-lhe em cima e...
- E... parece incrível!
- E começa a andar à roda, à roda, sempre para a direita, até atarraxar-se de novo ao rabo. No que está pronto vai-se embora!
No dia seguinte fui ao mato, sozinho, para verificar o caso.
Descobri logo umas sete covas, portanto sete tatus; destorci sete rabos, pu-los no chão trepei a uma árvore topada e esperei
vieram os tatus: vieram os tatus, fizeram os tais buracos, fincaram as caudas, sentaram-se em cima delas e começaram a
rodar, a rodar, a rodar. Dentro em pouco um primeiro cessou o movimento e atirou-se para a frente, na sua posição
natural, de quatro patas; e logo outro, enfim todos os sete, perfeitamente bons, enrabados, completos. Sem querer fiz um
movimento, e os bichos fugiram rápidos como setas. Era a pino do meio-dia.
Para comer é que não são bons: têm a carne mui dura.
|