Casos do Romualdo
Oitenta e sete

Quando fui ao Amazonas expressamente para preparar terreno para um negócio de tartaruga em grande escala, negócio que, de ótimo, tornou-se péssimo, por causa dos jacarés a minha viagem foi cheia de acontecimentos curiosos, nada vulgares, os quais para um sujeito impressionável seriam obra de mau agouro.

Viagem assim, dá-se uma vez na vida, outra na morte mas dá-se.

Fui em barco a vapor, de rodas; e como ia muito bem recomendado ao capitão do navio, fui sempre tratado à vela de libra. Dispensei, sim, a cama de bordo, para dormir sobre o meu costumado colchão de couros de onças, todos com as suas cabeças e garras. Estes couros, como se sabe, são muito magnéticos, e, no mar, livram do raio; em terra, espantam as pulgas, e, no mato, servem de vigia, contra as feras.

Logo ao suspender ferro, correu a bordo a voz tremida de terror, de que um dos passageiros era um famoso bandido, matador feroz de gente pacata, incendiário, saqueador.

E, realmente, um senhor indivíduo que embarcara à última hora, sorrateiramente, tinha toda a traça da maldade e do crime: enormes cicatrizes de talhos, desfiguravam-lhe o rosto; uma larga peladura, de bala, raiava-lhe a cabeça; todos os dentes molares, quebrados, e, nas costas, ainda aberta, uma grande chaga parecendo de queimadura.

Conservava na cintura um par de pistolas, de cano montado, carregadas, bem como um bruto facão, largo e afiado.

E tomava-se o indivíduo ainda mais suspeito porque estava embuçado em um amplo capote, que vinha-lhe até os pés, e completamente abotoado; no pescoço um cachenê de lã, e, na cabeça, um chapéu desabado sobre os olhos, o que tudo tapava-lhe do rosto, de forma que ninguém podia ver-lhe as feições.

O comandante e eu ficamos logo alertas, para o que desse e viesse, em defesa dos outros passageiros, ameaçados, medrosos ou inquietos, com justa razão.

O barco largou.

Ao sair o vapor a barra, debaixo de borrasca, mar desfeito em ondas colossais, nenhum passageiro resistiu; fugiram para as camarinhas, enjoados.

Eu, fiquei.

Acredito que por ser muito pitador de fumo de naco, forte, sem me sentir tonto, creio que por isso não enjoei.

Os que sofrem do enjôo do mar, principalmente as senhoras, bem podem ensaiar esse tratamento: pouco custa experimentar.

O navio subia na crista das ondas adernava parecia afundar-se no abismo, virar-se de quilha para cima! mas lá aprumava-se, e seguia avante, batendo as rodas com fragor.

O capitão assestava o óculo para o mar largo, cheirava o ar, sorria-se; e afinal disse-me, esfregando as mãos:

- Que sorte! Que fortuna! Que viajão vamos ter.

Quem não sabe é como quem não vê! O que parecia-me uma loucura, sair com tal tempo, era, ao contrário, uma bela esperteza do comandante: é que, à vista da barra, passava nadando para o norte uma colossal manta de tainha, cuja morrinha (de peixe cru) sentia-se então, fortíssima.

É mais que sabido que uma manta de tainhas, quando é grande, de conta redonda, como se diz, quebra as vagas, aplana as águas, torna o espaço de mar por ela ocupado perfeitamente manso. Navio que tem a sorte de poder meter-se no centro de uma dessas mantas, voga sereno, como em mar de rosas, ainda que ao largo estoure a tempestade, encapele-se o mar, revolto!

Pois tal manobra e marcha desenvolveu O vapor, que quando sentimos estávamos dentro da manta das tainhas, e navegando sossegados, como em água de rio.

Realmente, é muito cômodo!

Aquele imenso cardume de milhões de tainhas formava como que uma ilha misteriosa, que se movia, de corrida, à flor d'água, marchando sempre a rumo certo, que, por acaso, era o nosso.

Ao longe sobre as beiradas da manta, pelo óculo de bordo, via-se a arrebentação do mar, fazendo ressaca, espumando e espraiando-se, violentamente, como sobre uma praia de areia.

Durante todo o resto da semana, ao almoço e ao jantar, tivemos tainha fresca; e a bordo ainda salgaram muita.

E se durante mais dias não navegamos dentro da manta foi por causa da voracidade dos próprios peixes.

Assim:

As rodas do vapor não batiam n'água... não é exagero! Moviam-se dentro da massa compacta das tainhas, que nadavam aglomeradas; e, assim, é claro, esmagavam, matavam, tonteavam milhares e milhares delas; e tanto que essas morriam, as outras devoravam-as. e esta carniça foi estabelecendo a desordem na manta. As tainhas que comiam ficavam pesadonas e preguiçosas e deixavam-se ficar para trás; as que não tinham comido revoltavam-se - é o que parece - e começou então uma verdadeira batalha das tainhas entre si, que foram-se atirando umas às outras, tão depressa e tão vorazmente que, em pouco tempo, da manta só apenas restavam sobre as águas escamas e espinhas!

Certamente umas comeram as outras, e as outras comeram as outras.

Pra lá de Santa Catarina batemos numa baleia que provavelmente estava dormindo. Eu nunca vira semelhante animal; para espantá-la, a pedido do comandante, dei-lhe uns tiros sobre a cabeça; e sem querer meti-lhe todas as balas nos ouvidos; de forma que foi pior, porque ela ficou surda e não ouvia os apitos do vapor e os gritos que dávamos; o choque foi horrível; pensei que íamos a pique; felizmente o vapor tinha a proa muito esguia e o talha-mar muito afiado, e como apanhou a baleia em boa posição, bem a meio, cortou-a em duas metades; atoramo-la!

Foi a nossa salvação.

Pelas alturas do Rio de Janeiro, sentimos o navio rodeado de tubarões; era um rebanho, ou manada, ou tropa, como quiserem dizer. Era uma - manta - de tubarões; fica bem assim?

Fiquei horrorizado da companhia dos tremendos devoradores, e atônito para explicar-me o porquê daquele cerco tão perigoso. O comandante porém, muito prático das cousas do mar - também era o que faltava! - tranqüilizou-me em dois tempos. Ora, é simplíssimo.

Quando as rodas do vapor esmagavam as tainhas, da trituração dos corpos foi resultando uma pasta ou massa ou mingauzada de gorduras, de carnes, de ovas das vítimas; esta pasta foi pegando, besuntando o casco do navio. Da passagem à força por entre as duas metades da baleia, resultou ainda, como se fosse de caiação, mais uma mão de azeite misturado com esparmacete.

Ora, os tubarões são grandes comedores de tainhas e bebedores de azeite de baleia e mal no fundo do mar sentiram o cheiro daquela marmelada, vieram-se!

Porém como eles têm a boca debaixo do corpo e não na frente, como os outros animais, não podiam chuchar aquela rica pastalhada pegada no navio e que tanto os seduzia!

Assim fomos andando, como uma grande isca, levando a reboque a manta dos tubarões.

Vivendo e aprendendo!

Mais ou menos a meio do arquipélago dos Abrolhos, há dois caminhos a seguir: ou pelo mar largo ou pela costa; este encurta muito o trajeto, mas é muitíssimo perigoso, por causa dos arrecifes à flor d'água.

Porém o comandante do nosso vapor era extraordinariamente prático desses lugares, e de mais a mais tirou um partidão dos tubarões.

Foi assim:

Os bichos, sempre ao faro da marmelada de tainha pegada no navio, vinham coalhando o mar em roda: à frente, à popa, a bombordo e estibordo!

Qualquer guinada que desse o vapor, eles orçavam, acompanhando.

Quando o capitão meteu o navio nos arrecifes, o bando dos tubarões da frente foi servindo de guia; se eles paravam, o navio parava, recuavam, recuava; para a esquerda, para a esquerda; para a direita, para a direita!

Compreenderam?

Que capitão mitrado! Servia-se dos tubarões, tal qual como em terra um general serve-se de piquetes de cavalaria, na vanguarda. Tirei o meu chapéu: aquele golpe era de mestre!

Fizemos uma travessia absolutamente - ótima.

Quando estávamos próximos a sair daquele rendado de pedras, o capitão, sempre com o óculo nos tubarões da vanguarda, chamou-me a atenção para uma certa ilhota recoberta dumas esquisitas conchas, como de ostras, mas com um feitio especial, como de ninhos de pássaros. Julguei mesmo que fossem ninhos de gaivotas.

O comandante mandou tocar as máquinas devagarinho, para eu não perder nada do que ele queria mostrar-me. E disse-me:

- Olhe, Romualdo: o mar tem, por semelhança, todos os animais que há em terra: para o elefante, a baleia; para o tigre, o tubarão; para o cavalo, o boi, o cachorro - o cavalo-marinho, o peixe-boi, o lobo-do-mar. Para os pássaros, temos o peixe voador, e para os canários belgas, cantores, temos os canarinhos do mar, que é o que você vai agora ver e ouvir, naquele ilhéu.

Nisto o vapor deslizava em frente à ilhota, e eu vi, patentemente visto, e ouvi, patentemente ouvido, com estes dois e estes dois, dois e dois que são quatro, quatro que a terra há de comer vi e ouvi, por todo o rochedo, dentro e empoleirados na borda das conchas abertas, uns peixinhos amarelos cor de ouro, muito espertinhos, dando saltinhos e cantando, cantando numa granizada de trilos e gorjeios, tão dobrados e garganteados, que efetivamente parecia um bando de canários que houvesse pousado sobre aquele rochedo! Eu estava maravilhado! O comandante afirmou-me ainda:

- Romualdo, para a maior sucuri de terra, a maior que você possa arranjar, temos a serpente do mar; para a cobra mais venenosa de terra, temos a cobra-farelo que, quando morde o pescador, o nadador, este se desfaz logo em miangos.

- Ah! atalhei eu: sobre cobras, fale comigo! Escute!

E ali, no quente, entupi-o com umas sete cobras digo, sete casos de cobras.

E a ilhota dos peixes-canários sumiu-se no horizonte.

O navio retomou a sua marcha a todo o vapor, e a tropa dos tubarões estendeu-se também, na carreira.

Dias passados, à hora da merenda, deu-se a bordo uma avaria grande, na máquina.

O vapor esguichava e assobiava, saindo em rolos, pelos buracos abertos: foi o pânico entre foguistas e maquinistas!

A minha habilidade de atirador procurou minorar o mal; fiz vários tiros, de bala, metendo, é certo, as balas, uma em cada buraco, mas foi fraco remédio, porque o calor do vapor era tão forte que derretia o chumbo dos projetis!

Então - para os grandes males, grandes remédios! - meti os dedos nos furos, tapando assim a perda do vapor, enquanto o comandante mandava, a toda a pressa, rebater novos arrebites, por dentro da caldeira.

Não fora o meu sangue-frio e sabe Deus que desastre se poderia dar!

Eu digo sempre: caçar onças é boa escola para aprender a não se assustar!

Desejando uma linda companheira de viagem possuir uma gaivota azul das que então voavam sobre e em torno do navio, senti-me pesaroso por não poder ser-lhe agradável, por falta de munição própria: pois somente trazia uma barrica de balas.

A gaivota azul é uma ave muito maciça, e se eu atirasse-lhe com bala reduzi-la-ia a pó.

Mas lembrei que podia das balas fazer um pouco de chumbo era um pequena questão de algum trabalho e paciência.

Espetei uma faca afiada dentro de uma tina cheia d'água e comecei.

Carregava de bala a minha espingarda: apontava ao corte da faca, descarregava, e pronto; cortava a bala em duas metades, que caíam e esfriavam logo, dentro da água da tina.

Tornava a carregar, então já com as duas metades da bala; e novo tiro, e, zás! tinha os dois pedaços cortados em quatro; outro tiro com os quatro pedaços, e, zás! cortava-os em oito.., e assim, tiro a tiro, dividi uma mancheia de balas a... chumbo miúdo.

Isto aconteceu; mas no dia seguinte não se avistou nenhuma gaivota cor-de-rosa.

Afinal, num domingo, chegava eu ao meu último porto, o de desembarque.

Pela primeira vez na travessia, o vapor largava âncoras, parava!

Corremos então um sério perigo: fomos rodeados pelos tubarões, a quererem ainda comer a pasta de tainha, que restava pegada ao casco do navio. Atiravam-se às trombadas, ou às marradas, contra o navio; julguei, mesmo, que pudessem abrir o cavername da embarcação, mas, não, pobres! Eram os últimos arrancos da sua ferocidade, estavam cansados, estafados da viagem!

Atraídos e seduzidos pelo cheiro da pastalhada e danados por atirarem-se a ela, mas não tendo jeito para fazê-lo, por causa da marcha da embarcação, os tubarões haviam se esquecido de caçar outras comidas e também de dormir. E assim, em jejum e em claro por tantos dias e noites, à chegada, não puderam mais resistir à fraqueza, e com aquele último esforço foram morrendo, morrendo todos, com fundas olheiras e com as badanas em carne viva, de tanto nadar, e inflamadas, do sal da água do mar..., tal qual como gente, quando caminha muito e fica estropeada, com os pés sangrando, inchados e doloridos.

Tomei cômodos no principal hotel da cidade.

Notei que as cercanias do estabelecimento estavam apinhadas de povo, como se se tratasse de algum acontecimento de monta. No salão do hotel ia uma lufa-lufa de gente que ria, que dava as mãos, fazia caras extravagantes.

Bastante curioso, chamei o patrão da casa e indaguei do que se tratava.

Ele então explicou:

- O Senhor não sabe, porque ignora. Aqui ao lado, no sobrado, reside um casal, gente benquista e muito dada. O marido é uma pérola, a mulher uma jóia! Pois de há três anos para cá, cada ano a senhora apresenta sinais infalíveis de gravidez; isto e aquilo e aqueloutro que não enganam nem nunca enganaram nem marido nem mulher alguma.

O homem chamou um médico, dois, quatro, sete, dez médicos, em consultas, exames e conferências; e todos, ao mesmo tempo e a pés juntos, juraram, à fé do seu grau, que aquilo aquilo era mais que gravidez, era parto próximo. Até marcaram mês, lua e semana.

Pois e nada! Os sinais certos, volume, etc, desapareceram!

Marido, mulher, sogros, doutores, comadres, parentes e conhecidos, tudo pasmou!

E o caso passou, esqueceu.

Um ano depois a mesma cousa! Não havia dúvida: era, agora era mesmo!

O volume então, esse, era de duplo bojo.

Doutor houve então, que jurou que aquilo agora, ou era gravidez e parto próximo, ou então, ele queimava os livros e mandava a medicina às favas! E mais, que, a calcular pelo volume era de par de gêmeos para cima!

Novo alarme nas relações do casal; parabéns, presentes de roupinhas, promessas de missas, queima de velas bentas, etc. etc. Pois Senhor. A sua graça?

- Romualdo, um seu criado.

- Obrigado, outro tanto. Pois, Sr. Romualdo, nada! Tudo passou, tudo voltou ao seu antigo natural...

- Com efeito, Senhor. A sua graça?

- Figueiredo, um seu criado.

- Obrigado; outro tanto. Pois Sr. Figueiredo: é célebre!

- Muito célebre, Sr. Romualdo. Agora note: um ano depois, o terceiro portanto, que é este, o mesmíssimo sucesso se repete, está se dando, está impressionando a cidade, alarmando meio mundo!

A primeira vez, depois que tudo passou a senhora voltou a espartilhar-se, a passear, a ir a teatros e a bailes; a segunda vez, também tudo passou, desapareceu, alisou-se, voltou ao seu antigo natural. Mas agora ninguém sabe em que isto irá parar!

Desde que, aqui há meses, começou a correr a notícia da terceira gravidez e o volume - compreende? - foi aumentando... aumentando... o marido, por precaução, chamou doutores, muitos, daqui, de fora, de longe.

Estou com o hotel abarrotado deles; já reparou?

O que ninguém dá é uma explicação do mistério.

- É celebérrimo, Figueiredo!

- Celebríssimo, Romualdo!

As dores na doente seguiam o seu curso.

Uma noite, o dono do hotel, o Figueiredo, chamado às pressas para ajudar, lá foi. E veio logo chamar-me, a mim.., O homem estava pálido, trêmulo de comoções.

- Romualdo, o Senhor já é pai, ajude-me a ajudar o vizinho! Estão-lhe nascendo os filhos, muitos, uns atrás dos outros. É um cordão, não cessa! A um de fundo!

Saímos; fomos.

Como contar o caso?

Os doutores estavam a postos, alinhados, desde junto da doente, até muito para cá; e de um para o outro, de mão para mão, vinha passando criança sobre criança.

Era um colar, um rosário, uma enfiada de criancinhas, todas pegadinhas pelas mãozinhas!

E todas guinchavam, esperneavam, fortes e saudáveis, meninas e rapazes!

Valente senhora!

Afinal cessou aquela descarga de crianças, que os doutores, de lanceta em punho, começaram a separar, pois, como disse, estavam presas umas às outras, pelas pontas dos dedos. E logo tratou-se de banhá-las e enfaixá-las como foi possível em toalhas, lençóis, camisas, porque as roupinhas não chegavam para todas. Depois arrumar-se- ia tudo em ordem; o essencial agora era não deixá-las apanhar frio.

E, então, procedeu-se à contagem: eram oitenta e sete crianças!

Tudo chorava!

O pai.

A mãe.

A sogra.

Os doutores.

Eu.

Tudo chorava!

Como nenhuma das crianças tivesse morrido do mal dos sete dias, no oitavo fez-se o batizado geral. Funcionaram sete padres; além de outros senhores, todos nós, os que assistiram ao nascimento, fomos convidados para padrinhos, cada um dum pequenito.

Padrinhos, madrinhas, afilhados e amas formavam uma procissão, salvo seja!

Como não sou abelhudo e nem me envolvo na vida alheia, não quis, no momento, dar a minha opinião sobre aquele sucesso; porém pelo que ouvi, esparso, e por informações vagas, dos antigos do lugar, cheguei a esta conclusão:

Nem a tataravó, nem a bisavó, nem a avo, nem a mãe daquela senhora, nunca tinham tido filhos; de forma que toda a fecundidade, toda a força familieira, tinha passado, acumulada, para a minha comadre... e assim se explica como veio ela, sozinha, a ter, duma só vez, todos os filhos que deviam ter vindo ao mundo repartidos em... pelo menos, cinco gerações!

O meu afilhadinho lá ficou com o meu nome, Romualdo. Era o mais bonito, e olhem que é difícil ser o mais bonito entre oitenta e sete!

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