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Casos do Romualdo
O gringo das lingüiças
Bom é o dito: viver, não custa, saber viver é que são elas!
Estrangeiro é que é gente mestraça para saber arranjar a vida, de um nada faz muito
e quando um de nós mal se precata vê o tal homezinho embandeirado, cheio de boas patacas e
sempre chorando pitangas.
Conheci muito - quase na estrada do Caverá - um gringo ruivo, torto, de cabelo à
escovinha, chamado Domenico, o qual tinha um boliche mui arrebentado, localizado ao lado de cá
do Passo do Mutuca, sobre um galho do Ibicuí da Armada.
O lugar do arranchamento parece que foi escolhido a dedo: era trânsito obrigado de
carreteiros, tropas, cargueiros e quaisquer andantes. E todos, de comitiva ou escoteiro, antes ou
depois de varar o passo, faziam a parada certa no Domenico, que tinha boas sombras, boa aguada
e bom potreiro.
O gringo era sabido.
A venda só tinha uns garrafões de canha, rapaduras, queijo e alguns surrões de
ótima erva-mate; já de matreiro o dono não supria a casa - pelo menos à vista - porque tinha receio
de algum saque se mostrasse fartura nas prateleiras sim, que araganos por aqueles pagos era
cisco!
O que fazia a especialidade do Domenico era o amargo, e acima do amargo a
comida: era só lingüiça com ovos. Só, só, só: mas era uma senhora comida!
Quem chegasse - a que hora fosse - se pedia de comer, lá vinha a lingüiça com ovos.
E apesar de que o diabo cobrava-se a lo largo, o cobre não aparecia; entrava aos
punhados - balastracas, bolivianos e até onças! - porém ele chorava sempre, que mal
"guadanhava" para sustentar os filhos, que eram uma ratatulha.
Por uma causa desconhecida, porém infalível, aquela redondeza era também a
cancha certa da cachorrada gaudéria.
Em toda esta minha longa vida, nem antes nem depois, nunca vi tanto cachorro
chimarrão! Creio porém que seria o cheiro das fritadas que atraía aquele bicharedo: era como uma
isca cheirosa que voava no vento e entrava pelas bibocas e restingas chamando os chimarrões.
Todo o vizindário queixava-se de que a cachorrada baguala comia-lhe ovelhas,
terneiros, potrilhos, vacas magras e até a criação do terreiro; todos se lastimavam dos prejuízos.
O Domenico, não.
Uma ocasião, por motivo de grandes chuvas, fiquei ilhado no Domenico; quando
melhorou o tempo e dispunha-me a seguir viagem, fui atacado de violenta nevralgia, que por uns
quantos dias trouxe-me de canto chorado.
Ora, quando, a poder de folhas de mamono aquecidas com sebo de carneiro,
melhorei o meu tanto e resolvi marchar na manhã seguinte, justamente nessa noite foi a casa do
Domenico assaltada por uma pandilha de ladrões. E por mal dos pecados, estávamos sós; de
homens: eu e ele.
O gringo era passado nestas cousas, vi logo que não era esse o primeiro mondongo
que ele pelava.
Não se acobardou com o perigo; ao contrário, reforçou as trancas das portas, fechou
toda a família num quarto do centro da casa, pôs as roncadeiras, de dois canos, e a munição, em
cima do balcão, empinou um trago gordo, convidou-me para ajudá-lo e apagou todas as luzes.
Eu nem se pergunta - já se vê, estava pronto; amartilhei as minhas pistolas e
desembainhei os meus facões.
Os assaltantes, do lado de fora, junto à janela, cochichavam; de repente fizeram um
alarido e meteram ombros à porta, forçando-a.
Nós, quietos.
O Domenico soprou ao meu ouvido:
- La casa é di pau a pique, barreata.
Compreendi logo o partido a tirar e comecei a defesa, enérgica. Tiro sobre tiro na
parede que dava para o terreiro, e que era a do assalto. Como as pistolas eram especiais, de dupla
carga em cada cano, cada tiro, cada bala, varava a parede como se esta fosse manteiga!
E, tiro dado, bandido no chão!
O gringo fazia como eu; por fim já quase não podíamos respirar, de cerrado que tudo
estava de fumaça. Com o cheiro da pólvora começamos a espirrar, e aproveitei logo esse recurso,
espirrando e fazendo o Domenico espirrar, em tons diferentes e em pontos diferentes; e vá tiro!
Com essa hábil manobra sucedeu o que eu previa: os bandidos julgaram que havia
muitos defensores entrincheirados dentro da casa - pudera! tanto espirro e tanto tiro! - e rasparam-se,
carregando os mortos e feridos, que deviam ser muitos, pelos meus cálculos.
Suspendemos o tiroteio; tranqüilamente acendi um cigarro no cano da pistola, que
estava em brasa. E como não havia mais perigo urgente, resolvemos deixar o exame do local do
combate para de manhã. Acendemos a candeia e resfrescamos as armas.
O gringo apertou-me a mão, calorosamente agradecido, e declarou-me, a queima-roupa.
- Dopo mafiana voi no mangerete piü linguice in questa casa mia.
E foi soltar a sua gente.
Julguei que com o susto o coitado estivesse variando.
Deitei-me e dormi até sol alto. Apenas desperto lembrei-me do assalto noturno e
saltei do catre para ir ver os estragos que houvesse.
O terreiro apresentava enormes manchas de sangue, além de pequenos regatos
onde ele estava empoçado, coalhado, e espalhados pelo chão (que o Domenico deixara para eu
ver - e que os bandidos perderam por ter sido a noite muito escura) encontramos uns quantos
dedos de mão, vários pedaços de nariz e de orelhas, três retalhos de bochechas, alguns bocados
de miolos arrebentados e chamuscados pelas buchas, uma tampinha de joelho, um pé inteiro,
atorado pelo tornozelo, ainda calçado com o pé da bota e a espora, e muitos outros vestígios da
carnificina que haviamos feito, aliás sem esperar aquele montão de avarias. Enterramos aquela
pedaçaria pondo-lhe uma cruz ao lado!
Fomos almoçar. Tive então, e clara, a explicação da frase do Domenico, na véspera:
não havia lingüiça à mesa!
Galinha ensopada, uma paleta de ovelha, assada, e canjica de milho branco. Era
uma novidade completa! Verdade que eu não estava almoçando na mesa do boliche e sim na da
família do gringo.
Ele, então, abriu-se:
- Voi, qui, non mangerete piú linguiza. Vi diró perché e solo a voi, per gratitudine!.
E disse-o, assim, que eu repito em língua de gente, por não obrigar ninguém a traduzir:
- "Signor" Romualdo, já reparou como comem os diversos animais?
- Não, Domenico!
- Repare, "Signor", é curioso e instrutivo, O gato, come devagar, esparramando a
comida, escolhendo, catando, jeitosamente pegando, largando o pedaço; o porco, atola o focinho
no cocho, mastiga tudo, misturando, batendo a queixada, babando-se, roncando; o boi, deita de
lado a língua, para apanhar o pasto; o cavalo, corta-o, delicadamente; a galinha vai de ponta de
bico; o urubu, a bico e unhas, estraçalhando... mas o cachorro! o cachorro! ... come esganado,
sôfrego, às bocadas, tudo inteiro, sem mastigar! Parece que em vez de meter a comida dentro de
si, parece que ele é que se quer meter pela comida adentro. "É vero, Signor?"
- Sim, Domenico, é assim mesmo!
- Ebbene! Aqui os vizinhos todos lastimam-se por causa do cachorro chimarrão; eu,
não, ao contrário: gosto! Poupo muito trabalho, "Signor" Romualdo. É com eles que faço as
lingüiças para os andantes, mas deles, não é a carne que eu quero, "Signor", são as tripas.
Delicate, fine, mervegliose!"
É assim:
O cheiro das fritadas atrai muito os cachorros baguais; vai então, por isso, lá dentro
do galpão penduro um pedaço de lingüiça frita de bom tamanho, e bem alto, para eles não lhe
chegarem. Vem o primeiro farejando, outro e mais outro vem; enfim dezenas de cachorros vão
chegando, apenas no ar o cheiro da fritura anda voando!
Quando o galpão está cheio, fecho a porta e começo a laçar os cachorros e ponho-os
todos na corrente, cada um no seu palanque, lá detrás da horta.
Comida, nada; água, sim, à vontade. Assim, durante uma semana os vou limpando
perfeitamente; aquelas tripas ficam que nem resma têm, mais perfeitissimamente limpas.
Nas vésperas de um precisar, só então começo a dar água com sal, uma salmourita
leve, para manter o apetite.
Enquanto isso, mato os porcos, as ovelhas, ou as vaquilhonas, conforme a conta,
isto é, conforme os cachorros que tenho em compostura, isto é, conforme a quantidade de varas
de tripa que calculo em cada um, conforme o respectivo tamanho.
Bem, carneio as reses, pico toda a carne, tempero-a e deixo ficar uns dias, para
tomar gosto, cada porção separada para cada cachorro, conforme o tamanho, na competente
gamela.
A tudo isso, nos bichos, salmorita fraca!
No dia marcado para a fabricação, vou levando as gamelas e pondo em frente de
cada chimarrão.
"Per la madonna! Signor Romualdo!" aquilo é em dois tempos! Uhn! Uhn! Uhn!
e zás! come, que come! inhact! inhact! às bocadas, aos punhados, ao montões,
sofregamente, esganadamente, inteiro, sem respirar, às goladas, sem provar nem mastigar nada!
É uma cachoeira pra dentro!
Mal o chimarrão acaba de engolir e pega a lamber a gamela, então aproveito a ocasião.
Mato o cachorro! abro-o, amarro as duas pontas - o principio e o fim - da tripa e
pronto, tenho uma lingüiça bem-feita, grossa, parelha, e que me não deu trabalho nenhum para
encher.
Depois é pôr na vara a orear e ir cortando os pedaços para fritar, conforme o número
de gente a servir, e pra bonito, enfeitar sempre com ovos estrelados por cima. É "meraviglia!"
Tive, a modo, uns engulhos, e tratei de montar a cavalo.
Aquele gringo... aquele gringo era das Arábias!
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