Casos do Romualdo
O cobertorzinho de Mostardas
No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época
dava a nota no comércio da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de -
vassoura.
Varria o armazém - uma "venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas
vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do
patrão e ia à missa das sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu
cascudo dado pelo sr. 1º caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo
no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir
numa esteira, atrás das pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.
Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que...
Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas
como eu, porém bonitinhas como uns feitiços.
De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos mas
baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.
As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.
À noite, quando ia à bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.
Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e
forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do meu acanhamento.
Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da
cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro.
A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras,
puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só
havia de ser servida por mim!
- Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!
Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:
- É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu "orde"!
E este seu criado Matias. A vida ia correndo.
Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de
plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali
fazendo horas, até esses não apareceram.
Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim
perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando
embarafustou porta adentro a mulatinha:
- Seu Romualdo, três pé-de-moleque!
Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e
dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:
- Toma: isto é doce como tu.
A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:
- Como tu, vá ele! "Menas" confiança!
Estomagado com a ingratidão, quis retomar a rapadura e fisguei o pulso da mulata. Houve uma pequena
luta silenciosa e justo, ao tempo que entrava da rua o patrão, a mulata bradava às armas:
- Seu Romualdo, não me belisque!
- Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.
E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas, quebrei o corpo. Depois,
não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com
manteiga; nele e nela afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de
defesa.
Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas, outra negaça de corpo e quando
alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa.
Calafetei-o!
E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:
- Bem feito! Apanhou! Apanhou! Bem feito!
Cinco minutos depois entrava em casa.
- Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos
caixeiros! Patife!
- Mas ele ia arrancar-me as orelhas, murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com
a boca pegada a cuspo grosso.
E Romualdo pai:
- Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!
E Romualdo filho:
- Que ele sempre tratou-me como cachorro gaudério! Ih! Ih! Ih!
E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a
"velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.
Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.
Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-bofe
a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.
Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente
boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do
diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.
Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão
aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele,
era necessário tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava
com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.
Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.
O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a
santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra
pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de
miraguaia salgada, uma barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com
rendas de bilros, etc.
E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas
especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve,
transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar para os pés. tinha duas barras vermelhas e do
lado da cabeça tinha o meu - Romualdo - em letras azuis.
Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma
embira larga, descascada a capricho.
Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.
O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de lenços ... e tudo lá ficou,
para sempre, na volta do arroio!
Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé como caixeiro!
Chorei pelo patrão da manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha; chorei por
Mostardas, pelo lanchão.
Entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que
me confiaram.
Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para
mostrá-lo à minha mãe, a embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção,
mas já foi suando que o amarrei de novo com uma ourela de pano piloto. Minha mãe abanava-se
de leque, como em dezembro.
Segui para Bagé. Uma viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!
Todos sabem disso. Passemos adiante.
Quando a "deligência" fez a última parada, perto da igreja de S. Sebastião de Bagé, o
meu novo patrão esperava a encomenda.
Era eu.
Era ele um espanhol baixinho, gordo e gritão.
Como é dos estilos, pus a canastra ao ombro e marchamos para a casa do negócio.
Fazia frio! frio! Que frio que fazia! As fumaças do cigarro do espanhol ficavam
paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas... Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo;
emponchados, todos.
Chegamos. Entramos. Pousei a canastra. Olhei.
E chorei, logo. Aquela. distância, aquelas caras novas e cousas estranhas
achatavam-me.
O patrão então falou:
- Mira, chico, estarás estrompado, he? Vate a dormir. Mañana tempranito te
tomarás un cimarón con galletas!
E conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.
Lá, no Rio Grande, tínhamos esteiras, aqui temos pelegos. Ganhei na troca.
Atirei-me sobre o meu pelego. Mas o frio cortava.
Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui
abrir a canastra e sacar o meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia de estar com a cara como
uma batata roxa.
Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre meus
pelegos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino. E ferrei num sono de pedra.
Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.
Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros,
todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas, que davam para o quintal.
- Que abafamento! que calor! diziam eles.
- Parece meio-dia de fevereiro!
- Se tivesse água agora, era banho certo!
Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do
corpo. Fui para a janela, como os outros.
Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e - descalço, em ceroulas e de
poncho de pala enfiado - bradou:
- Eh! muchachos! Habrá fuego en la calle? Que está caliente como un sol dormiendo!
Mas logo bateram à porta da frente.
- Hay fuego, muchachos! Es fuego! A ver!
Saímos todos com o patrão; abriu-se uma porta e logo entraram uns quantos sujeitos
vestidos muito à frescata.
- Chê! Bote um capilé! pediu um, esbaforido.
- Outro! Que calor! gritou outro tipo.
- Menino, dá cá um refresco... reclamou um terceiro.
- Donde es el fuego? inquiria, aflito, o espanhol.
- Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.
- Isto é tormenta!
- Olha! Outro capilé!
- Aqui também!
E o calor aumentava.
Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas" de vidro.
Crianças vinham para a rua, em camisinha. Ouviam-se risadas, conversas,
chamados. Começavam a mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos de goiabada, rapaduras e
bolacha doce, latas de sardinha, ovos e toucinho para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas
improvisadas.
Outras casas de negócio vizinhas também abriam, para servir à sua freguesia. Havia
movimento em toda parte, como se fosse de dia.
As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no
armazém ainda era mais insuportável que lá.
De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que
arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as
velas de sebo e as barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.
Todos os que bebiam ao balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos
estavam mornos. Veio um negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria comer uma canja,
para passar o tempo; o caixeiro que foi ao galinheiro voltou, atarantado, a participar ao patrão
que as aves todas estavam assoleadas e já morto um peru gordo.
O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu
para os fundos.
Mira! Que cosa bárbara!
Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo
que tomava banho!
Nós todos no armazém suávamos como tampa de panela. Um estancieiro, freguês
da casa, pediu um chimarrão; o primeiro caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se
aquentar água àquela hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os
avios e a "chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de entrada foi dizendo:
- Eta, diabo! Lá na cozinha "tá" tudo fervendo!
Aquilo estava esquisito, estava. Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho,
entre Santo Antônio e São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia
como farinha, no terreiro e nos telhados.
E o espanhol, bufando, repetia:
- Que cosa bárbara! que cosa bárbara!
Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa
empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta e esgueirei-me para
o quarto.
Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até a
minha canastra: era insuportável, aí perto.
Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!
Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele estrupício na cidade.
Fiquei aterrorizado, se o espanhol descobrisse!
Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra,
que fechei com o cadeado.
E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Daí a pouco começou a
abrandar a torreira foi abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram
as barras do dia e todos se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.
Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu
cobertorzinho ao sol.
Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro e pegou fogo!
Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza, e nem fumaça tinha havido!
Olhem que era cobertorzinho quente, aquele!
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