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Casos do Romualdo
Essência de cachorro (Novo método para caçar)
Arrotam os europeus grandes fumaças de sabedores em cousas de caçadas; mas
como de presunção e água benta, deixá-los lá.
O que têm eles, de bichos caçáveis - graúdos ou miúdos - mais ou melhor que nós outros?
O javali? Ora qual! O javali é como o nosso porco-do-mato.
O urso? Deixa! O urso de lá é como o tamanduá-bandeira, nosso.
Têm eles a onça, o jacaré, a sucuri, o bugio? Nem sombra disso.
A perdiz? Sim, têm a perdiz, mas é preciso notar que a perdiz, lá, é quase criada
como as nossas galinhas, em cercados. E não têm o perdigão, o perdigão soberbo, que salta no
vôo, encastela no ar paira um momento, e logo desfere numa flechada comprida, para o
pajonal.
A marreca? Vá lá, têm marreca porém marreca de tanque, nascida e criada atrás
das casas, quase a comer milho na mão! Mas não têm, nem tiveram, nem terão nunca as
nossas bandadas de marreca assobiadeira, de marrecão do banhado, nem o maçarico-carão, que
voa em fileira, como soldados em forma. Afora o alho!
E é engraçado: não têm caça mas cachorros, matilhas, têm em quantidade e
regularesinhos. Foi sempre o que achei esquisito: cachorrada imensa, para caça vasqueira.
Pode lá ser também um luxo daqueles duques e barões e outros topetudos de dinheiro.
Eu, por mim, nunca me embaracei para caçar - de pêlo ou de pena - por causa de
cachorro. E já agora, que vivo arredado desses prazeres, por motivo de muitos encargos de outra
espécie, resolvi revelar e ensinar aos meus confrades em venatória o processo que usei e que
pareceu maravilhoso a muitos sujeitos mestres, caçadores provados, porém aos quais, sempre -
desbanquei com facilidade.
Eles ralavam-se, mas qual! ficavam sempre na culatra!
Esse segredo eu o aprendi com um índio velho, em Goiás, quando por lá andei em
busca do... Não digo agora a busca de quem, porque é também outro segredo, que não posso por
enquanto revelar.
Pois o velho caboclo tomou-se de particular simpatia por mim, porque ensinei-lhe três
cousas, novíssimas, e para ele, de alto mérito.
Ensinei-o a fumar charuto, e como logo mostrou-se um apaixonado pelo "tarbuco",
ensinei-o também a fazê-lo, com aquele magnífico fumo goiano, muito superior ao havano, que
tem mais fama que valia. Os nossos charutos não saíam lá grande cousa quanto ao feitio, mas de
qualidade eram especiais. Punhamos-lhes anéis de folhas várias, coloridas com diferentes sumos
e colávamos as capas com resina de benjoim, que é perfumosa.
Eram deliciosos os nossos charutos, principalmente depois de um regalado almoço
de mocotó de onça, sucuri moqueada, picadinho de tromba de anta e rins de jacaré assados no
espeto! E disso caçávamos todos os dias. Ainda hoje, crio água na boca ao recordar aqueles
petiscos.
Segundo: ensinei ao caboclo a fazer "omelettes". Cortava-me a alma o ver aquela
gente perder ovos preciosos, chupando-os crus, como os lagartos, ou comendo-os assados no
borralho. Ensinei então a fazer "omelettes". Batia as claras e logo as gemas em uma casca de
tartaruga; em outra casca derretia banha de paca (que é finíssima) e dava o ponto, virando com
duas espinhas de tucunaré, que é um peixe deste tamanho! Tostava com uma pedra em brasa e
adoçava com mel.
O caboclo pelava-se pelo prato digo, pelo casco de "omelette"; e as caboclas -
modéstia à parte - traziam-me nas palminhas.
Terceiro: ao referido caboclo também ensinei a pregar botões na roupa.
Em troca desses serviços foi que o cacique, por sua vez, ensinou-me o precioso
segredo que ao depois assegurou-me sempre a vitória em toda e qualquer caçada em que tomei
parte e cuja conta perdi.
Disse o pajé:
- Branco, tu és o Romualdo! Tu tens o que chamas espingarda e facão tu tens, e tu,
coragem tens! Mas, tens também cachorros, muitos; e Tupã só se alegra de fornecer caça aos
guerreiros, mas não às alimárias do guerreiro!
"O mosquito também pode matar a anta, porque o mosquito é muitíssimo e a anta,
uma só, e o muitíssimo mosquito, que é pequeno, vence a anta, que é forte, porém sozinha! E a
piranha, que é pequenina, também come o mais valente guerreiro, porque é muitíssima."
"Portanto, branco, é cobardia ter muitos cachorros para caçar um bicho só, seja qual
for. Ouve, Romualdo! Atenta nas palavras da minha boca. Tupã te fala de dentro da minha cabeça.
Atenta, branco!"
"Todo bicho tem sua catinga, que é o seu cheiro, como as flores têm o seu perfume.
A catinga de cada bicho é sua só, e nenhum outro tem-na igual. Ouve, branco: e os bichos
conhecem os seus iguais e os seus inimigos só pela catinga, o bicho levanta o focinho pra catinga
do outro bicho, e já conhece o perigo ou a paz."
Mas bicho sempre é bicho e o homem vence-o sempre, porque tem o hálito de Tupã
dentro da sua cabeça. Ouve, branco".
E na sua linguagem difusa, cheia de imagens, o caboclo falou horas esquecidas,
dando a explicação da matéria.
É complicadíssimo o processo, mas isso explica-se pela dificuldade que o indígena
tem de preparar os meios de que carece.
Posto, porém, em pratos limpos, para nós, civilizados, é facílimo.
Por exemplo: o caçador vai para o mato com dez cachorros; de repente estes
farejam... onça. Portanto - catinga de onça. A onça, por sua vez, também fareja os cães: portanto -
catinga de cachorro.
Temos, pois, catinga contra catinga. Porém a onça, sendo uma, a sua catinga é
menor que a dos cachorros, que são dez. Ora, aqui está a chave da receita.
Partindo desta regra, que é infalível, compreende-se desde logo o mistério. Basta o
caçador dispor de algum recurso pecuniário para preparar as essências.
As essências, isto é:
O caçador onceiro tem de comprar uns duzentos cachorros onceiros; escolhe e
separa o melhor de todos eles para - figura - mata todos os outros e jeitosamente extrai a cada um
a respectiva catinga.
Então, quando for ao mato oncear, leva apenas o cachorro - figura - para farejar e
levantar o inimigo; no que o cão acuar, o caçador derrama-lhe no cogote sete gotas da essência da
catinga dos duzentos cachorros. A onça, que de começo farejou um só cão inimigo, já sente
agora a catinga dos duzentos e desanima, acobarda-se, fica como uma ovelha; o caçador então
pode chegar-se e sangrá-la, ou mesmo, se for destro, amarrá-la das quatro patas. O bicho fica
entregue. Está sob a impressão do terror de um cerco de duzentos cachorros talvez até sinta as
dores de já estar despedaçado aos golpes de tantos mil dentes e, adeus! resistência! Era uma
vez - uma onça.
O mesmo processo, ainda aperfeiçoado por mim, empreguei para a caça do veado,
da avestruz, da perdiz, do tatu, etc.
O veado, perseguido pelo - figura veadeiro - (este, já se sabe, molhado com a
essência de catinga de veadeiros) o veado, digo, não dispara quase, ilude-se pelo faro, julga-se
acossado por dezenas de veadeiros desanima, julga-se estraçalhado, morto, e então o - figura -
aproveita e subjuga-o facilmente.
A avestruz também não corre; embalde ela vê que o cachorro que a persegue - o
figura - é apenas um mas a estúpida fareja muitos - na catinga do avestruzeiro - e faz as
mesmas cousas que o veado, e deixa-se prender.
A perdiz, da mesma forma: como que se sente rodeada de perdigueiros; que o
campo está coalhado de perdigueiros e que, tendo vôo curto, não poderia transpor a zona dos
inimigos.
E enfim, nem preciso pôr mais, na carta.
Como se vê, por este processo, praticam-se
prodígios, e como não sou egoísta aí deixo a receita do famoso - sistema Romualdo - que tantas
invejas e calúnias acarretou ao humilde descobridor.
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