Cancioneiro guasca
Desafio

(Entre Malaquias e Agache em uma festa de casamento)

Malaquias:

Aceite a Sra. Lúcia
O meu alegre cantar!
Só peço a Deus mil venturas,
Que decerto lhe há de dar!

Ao noivo também desejo,
Por ser moço apessoado,
Que seja um marido em regra,
Por todos sempre estimado.

A sô Capitão Manduca
Que também sente alegria,
Desejo que tenha netos
Que lhe dê muita honraria.

A este casal de noivos,
Por ser gente mui honrada
Desejo que se arrodeie
De bonita filharada!

Agache

Ao lindo casal de pombos
Desejo toda a grandeza,
Saúde e categorias
E bastante amareleza!

Que a noiva viva contente
Cheia de brilho e beleza,
Com seu noivinho fachudo,
De gravata sempre tesa!

Que o sô Manduca desfrute
A vida com gentileza,
Nesta casa abençoada
Só cheia de boniteza!

Que tenha netos, visnetos,
Como manda a natureza,
Moçada toda faísca,
De muita politiqueza!

M:

A minha china é trigueira,
Mais trigueira que um pinhão,
Barriga d'égua-madrinha,
Olho de gato ladrão!

A:

A minha china é perversa,
Deu-me um triste desengano;
Fui encontrá-la nos braços
Dum mascate italiano...

M:

Me trata como cachorro,
Só me chama de animal!
Não há china mais maleva
Que a Zefa do Faxinal!

A:

A mulher com quem casei
É toda a minha arrelia:
Quando está com seus azeites,
Me dá três sovas por dia!

M:

A mulher é como o gato;
Que mia quando namora:
Porém assim que se casa
Põe logo as unhas de fora!

A:

Saibam todos, meus senhores,
Saiba todo o vizindário:
Que p'ra semana me caso
Co'a filha do seu vigário!...

M:

Vendo tudo quanto tenho
Só p'ra me chegar a ti;
E só não vendo as ceroulas,
Porque nunca as possuí!

A:

Fui fazer uma viagem,
Andei uns meses por fora;
Na volta, encontro a mulher,
Já pronta... p'ra cada hora!

M:

Eu antes de dar princípio
A esta luita travada,
Cumprimento o sô Manduca
E a sua família honrada.

A:

Dirijo os meus cumprimentos
Ao cantador Malaquias,
Que vem mostrar nesta casa
Suas grandes valentias!

M:

Eu sou muito conhecido
Na Cruz Alta e S. Sepé,
Na Cachoeira, em Pelotas,
No Rio Grande, em Bagé!

A:

Pois eu também tenho fama
Nos pagos da Encruzilhada;
Rio Pardo, Porto Alegre,
Eu tenho feito agachada!...

M:

Eu já fui peão d'estância,
Fui capataz e tropeiro;
Agora lavrando terras,
Vou ganhando o meu dinheiro.

A:

Enganaste-te, amiguito,
Não sou amigo da pândega;
Empreguei-me em Porto Alegre
Como servente da alfândega!

M:

Se queres ver minha força,
Tomar nota do que eu sei,
Me faz algumas perguntas,
Que eu tudo responderei.

A:

Aceito a tua proposta:
Diz-me agora por favor,
Que bicho é esse daninho,
Que todos tratam de amor?

M: Amor é bicho de concha,
Que se intromete no peito,
Quanto mais se enxota o bicho,
Mais ele nos tem sujeito!

A:

Se o amor é bicho feio,
Tu não deves explicar,
Por que é que amor de mãe
Se faz tanto respeitar?...

M:

Amor de mãe é sagrado,
É sentimento divino;
É como o sol que alumia
Nossa estrada do destino.

A:

Foi bonita esta resposta,
Porém ela não me basta:
Quero que agora me digas
O que é amor de madrasta.

M:

Amor de madrasta é sarna
Que esfola o corpo da gente;
Madrasta não é mulher,
Mas venenosa serpente!

A:

Pergunta-me alguma coisa
Que te corra no besunto,
E verás como respondo
Direito no mesmo assunto!

M:

Como desejas que eu faça
A pergunta que quiser,
Me diz em quatro palavras,
Quem vem a ser - a mulher?...

A:

Toda a mulher desde Eva,
Tomou partes do diabo;
Quando s'enfeita, parece,
Uma macaca sem rabo!...

M:

Quero ainda exp'rimentar-te;
Se és cantador de talento,
Num rasgado da viola
Me diz o que é - casamento?

A:

O casamento, amiguito,
Sempre é coisa mui amarga,
Pois transforma um cidadão
Num triste burro de carga!

M:

Se me puxas pela língua
Mostrarei que não sou peco,
Mas muito capaz de levar-te
De arrasto num couro seco!

A:

De arrasto num couro seco
Levarei a tua vó,
Toda a tua parentada,
Com cabresto de cipó!

M:

Com cabresto de cipó
Eu vi a tua madrinha
Á frente de uma manada,
Repicando a campainha!

A:

Repicando a campainha,
Vi teu pai - um boi tambeiro -
Levando muito guascaço
Por ser bicho mui coceiro!

M:

Por ser bicho mui coceiro,
Desbocado e sempre mau,
Levaste do Chico Porto
Muita camada de pau!

A:

Muita camada de pau
Precisa o negro atrevido,
Que se meta em vida alheia,
Por ser muito intrometido!

M:

Por ser muito intrometido,
Vou-me saindo folheiro,
Montado no João Agache,
Orelhudo e caborteiro!

A:

Orelhudo e caborteiro
Sempre foi o teu avô.
Deu mais de trinta corcovos
No dia em que se ferrou.

M:

No dia em que se ferrou
A tua mulher - tordilha -
Deu quatro coices nas trombas
Na porca da tua filha!

M:

Vou mostrar um peito nobre
Que sente aquilo que diz:
Desculpa, meu bom Agache,
As injúrias que te fiz!

A:

Com tua delicadeza
Tu me mostras qu'és dos nossos!
Esquece os meus estrupícios...
Amigo, aperta estes ossos!


FESTA DO CAMPESTRE

Santo Antão. Capela do Monge
Santa Maria da Boca do Monte

Damasceno Vieira
(Da peça - Os Gaúchos.)

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