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Casos do Romualdo
O meu cinto de couro de anta
Cousas fortes... cousas fortes ... Não, certos objetos não devem ser tão fortes que possam por isso vir a ser prejudiciais.
Eu me explico. Tive um cinto de couro de anta. Como se sabe, o couro de anta é um couro quase impossível de quebrar-se:
é de uma resistência espantosa, rival do aço estirado.
Meu pai, durante cinqüenta anos, usou umas rédeas de couro de anta, couro por ele esfolado, e já as havia
herdado de meu avo, que foi quem caçou o dito bicho, sozinho, e até sem cachorro; e eu usei-as ainda por muitos anos,
pelo prazer de serem feitas do couro de um animal que eu mesmo havia morto; foi mesmo com uma dessas rédeas que
amarrei o meu baio Gemada, à cauda de um tatu-rosqueira, o que custou a vida ao meu estimado cavalo...
Parece-me que já falei nisso.
Pois o meu cinto, tirado do couro daquela mesma anta, e companheiro das rédeas, o meu cinto, digo, por forte, certa vez
fez-me passar agonias.
Andava em trabalho de campo, lidando com uma tourada de conta, cada bicho bem-criado, forte e bravo, que metia
medo! Havia então um certo touro brasino que era uma verdadeira fera, e foi justamente esse que tomou-me
embirrância especial, creio que por causa do pêlo do cavalo que eu montava, que era vermelho. Por várias vezes
ele atropelou-me de rijo; não andasse eu tão bem montado e seria colhido.
O tal era de raça franqueira, e tinha umas aspas abertas, quase de braça, cada uma, e grossas, na proporção.
Pois não lhes digo nada!
A última carga foi tão repentina, que eu só senti o perigo quando os companheiros gritaram, assustados. Mal tive tempo de
cravar as esporas no baio, que deu dois saltos pra diante, mas - fatalidade! - para tropeçar e cair...
Com a minha calma habitual, saí perfeitamente, de pé; mas o touro vinha.., e no ímpeto em que vinha, com a chifrada armada,
mal pude dar um passo à frente.
Ele baixou a cabeça, dando a tremenda marrada, e quando levantou a chifrada, esta resvalou por cima do
cavalo e veio colher-me a mim, ainda de costas, certo, perfeitamente certo, entre o cinto e o corpo, nem mais
nem menos; e, assim, fiquei dependurado no chifre do touro, tal qual um par de calças, suspenso pela presilha,
num cabide. Que situação!
Por causa do peso do corpo, eu não podia desafivelar o cinto, e soltar-me; na posição em que estava, de costas,
não podia fazer finca-pé e alçar-me acima do chifre e desengatar-me.
E o touro disparou para o banhado levando-me dependurado, a dar com as pernas e os braços, como um boneco de cata-vento.
Os companheiros, que estavam de cavalos cansados, não puderam socorrer-me e perderam-me de vista.
O touro meteu-se banhado adentro, para a sua querência.
Curti sofrimentos!
Fiquei sabendo falar de cadeira sobre o micuim, mosquito ruivo e mutuca parda sobre espinho de gravatá e serrilha de tiririca
sobre camoatim e formiga vermelha!
À custa de muito esforço consegui, movendo-me, torcendo-me, ajeitando-me, consegui firmar um pé no cachaço do
touro e melhorar a posição, sentado naquele estranho banco.., sem encosto... Mas sempre foi um meio alívio.
Escureceu; como é fácil de imaginar, tive insônia. Amanheceu; e eu, como é fácil de imaginar, contrariado, por não poder ao
menos lavar o rosto e pentear-me, como de costume.
O touro, parece que nem sentia o meu peso; andava, pastava, remoia, mugia, farejava as vacas e acariciava os
terneiros - seus filhos, provavelmente - sem mostrar que eu pesasse mais que uma palha seca.
Lá pelas tantas da segunda tarde, encontrou-se ele com outro touro. Berraram, ambos; escarvaram, rodearam
um pelo outro, em desafio, e, de repente - questão de ciumada - de repente, atiraram-se, em briga de morte, como
duas feras, que eram.
E eu, de testemunha obrigada!
Ah! meu amigo!
Me vi morto, esmagado, esborrachado entre aquelas duas cabeças duras ...
esborachado, estripado, entre aqueles quatro chifres pontudos! ...
Morto! Morto! Morto!
Pois não, senhor: justo, justo, quando se chocaram as duas brutas testas numa marrada formidável, capaz de esfarinhar
uma pedra, justo, justo, aí quando, brrr! eu ia morrer, aplainado, chato, quebrou-se o dente da fivela do cinto, que, pois,
desprendeu-se, e eu caí ao chão, solto, livre enfim, e disparei rua fora, e quebrei a primeira esquina, sem olhar pra trás!
Esquecia-me de dizer que durante esses dias de fome sustentei-me de araçás, que havia muito, no tal banhado.
Pois é... se não fosse o dente da fivela quebrar-se, o meu cinto de couro de anta, por bom demais, matava-me, olé, se matava!
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