Cancioneiro guasca
Carta de um moço tropeiro

Cá te escrevo, destes pagos
Onde a sorte me há boleado,
Rebenqueado de saudade
Como um matungo cansado.

Um só dia não se passa
Que me não tire a paciência;
De quando em quando relincho
Com saudades da querência.

Desde que as patas do baio
Pisaram neste rincão
A modo que já nem como,
Já não tomo um chimarrão.

Dize à Rosa do Manduca,
Sobrinha do Tiririca
Que o nosso casamento
Desta feita em nada fica.

Vim levantar nestes pagos
Certa gauchita matreira
Que tem plata como terra
E é lindaça e faceira.

Estes dias se encontramos
Bem no atalho da picada
E num repente a pequena
Cabresteou, pela olhada.

Assim chegamos à fala,
Confiou-me os seus pesares
Andando tão só no mundo
Inveja todos os lares.

E sonha fazer seu ninho
Encostada a um braço forte
E andar a estrada da vida
Com ele junto, até a morte.

Mas o tutor, pássaro bisnau,
Sentiu catinga de tigre
E tem me armado parrandas
Esperando que eu emigre.

Cuê-pucha! sotreta maula
Já quis se fazer de fino
Aias mostrei-lhe quanto vale
A aspa de boi brasino.

Fiz-lhe um arranco macota:
Botei-lhe a traíra ao peito!...
Foi só numa relancina:
E acoquinei o sujeito!

Por isso não te admires
Do pouco que tenho escrito,
Agora cumpro a promessa
Conforme tinha te dito.

Chegando, dei água à tropa
E foi pastando, d'espacito
Algum mais delgado, encheu,
E tudo ficou bonito.

Quando cheguei na Tablada
Vieram charqueadores
E fizeram suas contas
Como bons entendedores.

Com pouco mais arreglamos
Negócio, dinheiro à vista
No outro dia a guaiaca
Já 'stava cheia de alpista.

No "Paraíso das Damas"
Eh puxa! que me entestei
Pois enchi os pessuelos
De tudo quanto gostei.

Num gringo mais adiante
Chamado Mussiú Levy
Não estrompei dinheiro
Só naquilo que não vi.

Comprei memórias mui lindas
Com pedras vindas de Europa,
De forma que aí deixei
Quase o dinheiro da tropa.

Mais umas araganadas
E outras coisas merquei;
Onça por onça escorria
A minha tropa de lei...

Um certo dia, contente
No meu cavalo lazão
Num jogo de argolinhas
De todos fui o pimpão.

Atropelei o meu flete
E como não tinha medo
Logo tirei uma argola
Bem enfiada no dedo.

Aí é que tive o golpe
Da gauchita que te digo
Tremi todo só de olhá-la
Que olhos! que face, amigo!

A prenda fui ofertar
A essa moça bonita,
Que no braço me amarrou
Uma maneia de fita.

Foi como coisa mandada,
Acolherados ficamos;
Seguiu-se o que já te disse
E assim é que nos casamos.

De lá saí mui gamenho
E meti o meu bagual
Numa praça que tem pasto
Como a estância do Seival.

E dali fui resvalar
Bem na porta do mercado
E saiu-me um índio velho
De chapéu baio encerado.

Entrei por um portão largo
E me apeei, de repente,
O cujo pinchou-me multa,
Deixou-me de marca quente.

Agora é com a Marucas,
Já te contei anedotas,
Vou contar como se vestem
As muchachas de Pelotas.

Usam cabelo na testa
Tosadito a cogotilho
Mais alinhado e parelho
Que o do teu bagual rosilho.

Usam fitas na cabeça
Qu'esvoaçam com os ventos
E do lado de laçar
O leque preso nos tentos.

Usam coletes cinchados
E ancas esparramadas
Parece, quando caminham,
Avestruzes boleadas.

Usam botinas mui lindas
E de tacões muito altos
De forma que sem esporas
Andam elas sempre aos saltos.

Usam preso no granito
Um peitoral de ouro puro,
Ao qual prendem o retrato
Do cujo que está seguro.

E outras muito trapalhadas
Que eu vi e não sei dizer;
Quando vender a outra tropa
Com vagar hei de aprender.

Ah! me diz à Marucas,
Que recomendo a ximbé,
(A filha da vaca osca,
Neta do boi jaguané)

Dá lembranças à tia Rosa
E mais ao compadre Juca
E tu, já sabes, ocupa,
O estimado irmão

Manduca

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