Cancioneiro guasca
Carta

Amigo Alano

Aqui atado ao palanque, não me é possível retouçar um pouco por essas coxilhas; e assim me vejo apartado dos companheiros, crioulos lá dos meus pagos; vou portanto arrolhar estas letras na canhada desta folha de papel, e depois as farei repontar para esse acampamento, estimando que elas o vão achar alentado e de saúde.

O tempo corre mais que nem um bagual com um couro cru na cola, e nem a tiros de bolas se pode apanhar o que já passou; e nós, desgarrados por estes campos, vamos gastando carnes e ficando rosilhos-mouros, longe da querência, passando sempre uma vida de cachorro chimarrão; ainda hoje me lembrei do tempo em que era meio rufião; que via uma moça linda, já me endireitava todo e trocando a orelha, logo, sem me parar na estaca, lhe ia discorrendo pelo teor seguinte:

Os olhos de minha amada
Ardem mais do que um tição
E as faíscas que lançam
Salpicam meu coração.

E se ela se parava um tanto mesquinha, já lhe largava este outro:

Não sejas arisca, bela;
Basta para o meu castigo,
Que seguro já me tenhas
Com maneia e pé-de-amigo.

João Alano da Silva, Tte. de Guardas-Nacionais - 1851.

Não quero, porém, me recordar destas coisas que me fazem ficar aguando, e de golpe; mudando de rumo, trataremos de outro assunto.

O que diz, amigo Alano,
Do que toca ao nosso pleito?
Viver assim deste jeito,
       Não me agrada.

Decerto é vida arrastada
A nossa, por este lado,
Dormindo como veado
       Na coxilha...

Rosas, com sua quadrilha
De blancoss em Buenos Aires,
Dizem que já armou os frailes
       Contra nós.

Há de, esse monstro feroz,
Exp'rimentar desta feita,
Aquilo que o diabo enjeita
       No inferno.

Deus queira que neste inverno
O caudilho, degolado,
Não vá, de presente, enviado
       A Satanás!

E como joga sem ás
E sem manilha de espada,
Há de arriscar na parada
       O ás de copas...

E depois, mandará as tropas
A generala Manoelita*
Essa guapa señorita.
       Mui afamada.

Carga seca e denodada,
Por Deus! que lhe hei de fazer!
E se o pai aparecer...
       Passo de largo!

O seu trato é bem amargo;
E somente p'ra brincar,
Gosta de fazer tocar
       A Resvalosa**

Dessa fera tão danosa
Deus nos livre, amigo Alano!
Eu quero gozar este ano
       Da nossa terra.

Este país sempre em guerra,
Tudo traz em calções pardos.
Os campos só criam cardos
       E gafanhoto.

Ao feijão chamam poroto,
À batata, cacaraxa;
E o que chamamos cachaça,
       Eles dizem - caña.

E por aqui tudo é manha
Tudo é burla e tudo é peta;
Todo cavalo é maceta
       E rodilhudo.

Todo gaúcho é peludo,
Todo o matungo é matreiro;
Em cima disso, o pampeiro
       Nos assola!

Ora sebo! isso me amola,
E me faz desesperar;
Tomara já me pilhar
       Nos meus pagos!

Mas, caramba! amigo João!... Agora mesmo ouvi dizer que você ia cortar, que nem tento, e que desta feita se atirava a nossos pagos, e eu aqui fico relinchando, como potro corrido da manada. Ah! saudade!... que não possa eu fazer o mesmo, e sair-lhe grudado, como carrapato na costela de animal peludo! Enfim, Deus o leve a salvamento, e quando lá chegar diga aos nossos patrícios que

Eu cá fico penando,
Mais triste qu'a saracura,
Que, quando adivinha chuva,
Seu canto mais apura.

Mas que estou fazendo, amigo Alano? O meu engenho, bastante estropeado, não se pode agüentar no pedregal da poesia, o sentimento que me causa a sua partida me põe de uma vez bichoco, de forma que lacerado pela saudade,

Vou dar-lhe a despedida,
Como deu o gaturama,
Que se despediu, dizendo,
- Muito padece quem ama. -
* - A filha do ditador Rosas.
** - Mazurca, ao som da qual o ditador fazia degolar os prisioneiros.

Deste amigo e patrício
Francisco Marques de Oliveira - Capitão
(Na campanha de 1851)

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