Casos do Romualdo
A Tetéia

Pois sim! Venham-me pra cá com histórias de cachorros bem-ensinados e obedientes! Igual, pode - e ainda duvido! - porém melhor que a minha perdigueira Tetéia não há nem houve, e talvez até nunca haja!

Contaram-me como grande cousa um caso dum barão alemão, um tal Münchausen, que possuiu uma cadela lebreira, a qual, estando grávida, mesmo assim correu uma lebre que, por coincidência estava também grávida. Correram, correram muito as duas próximas mães... e tão próximas que durante a corrida a lebre teve as lebrinhas e a cachorra os cachorrinhos. E como a raça não nega a traça, os cachorrinhos largaram-se logo a correr atrás das lebrinhas, enquanto que a cachorra recém-mãe continuava a correr atrás da lebre também recém-mãe.

Sim, senhor! era um bom animal, não nego: mas a Tetéia era melhor.

Escutem e julguem.

Uma manhã saí a caçar perdizes e levei a Tetéia.

Eu não conhecia o campo, e isso foi a causa de um grande desgosto para mim. Mal entramos no macegal, a Tetéia amarrou, toquei-lhe com o joelho na anca, ela andou uns passos: a perdiz levantou-se no vôo e flechou! Pum! Tiro dado, perdiz em terra, e Tetéia, trazendo!

E assim, de enfiada, foram-se os cem cartuchos que eu trazia: cem perdizes em meia hora. E note-se que eu errei dois tiros e cinco cartuchos falharam.

Sentei-me e comecei a atar as minhas perdizes, pelas pernas, para pô-las ao ombro e regressar.

E, distraído, esqueci-me da chamar a perdigueira e fazer-lhe compreender que estava findo o divertimento. Esqueci-me; e quando, tudo pronto, ia a marchar, só então lembrei-me da cachorra.

Chamei: Tetéia! Tetéia! assobiei, fiz os sinais costumados, nada! Estranhando o fato arriei o fardo das perdizes, e andei a procurar, sempre chamando, assobiando, e nada, nada de resposta!

Supus então - naturalmente - que a perdigueira, desobedecendo pela primeira vez, tivesse ido para casa, sozinha, antes de mim. Era um procedimento de cachorro, mas vá lá por uma vez! E assim pensando, fui-me embora.

De chegada indaguei. Não, não tinha aparecido. Causou-me espécie aquela demora; depois, quem sabe, algum namoro.

Esperei, chegou a noite, o outro dia; e nada de Tetéia!

Tive então um pressentimento funesto nem me restava mais dúvida: a honesta perdigueira certamente havia sido picada por cobra, alguma cascavel, alguma viradeira medonha, e a esta hora! Pobre, pobre infeliz bicho! Fiquei realmente paralisado, triste.

Para distrair as mágoas e variar de comida e emoções, andei caçando veados para outro rumo; marrecas, nos banhados; quatis, tatus, etc.; e fiz várias batidas num tigre fugido de gaiola, que não apareceu nunca, talvez assustado da minha fama.

Foi até uma imprudência esta batida ao feroz tigre; eu não tinha cachorros próprios e os companheiros falharam-me à última hora, alegando cada qual a sua razão; um que tinha de arrancar batatas, outro que a mulher estava para cada hora, outro que fincara um estrepe no pé enfim, deixaram-me sozinho, justamente quando ali perto, à vista, o tigre urrava tremendamente, como desafiando!

Pois fui, sozinho: eu e a minha faca de mato; apenas por segurança, para ter o alarme certo, levei um gato num cesto, porque o gato é um animal muito elétrico e de longe já sente a catinga do tigre, e dá logo sinal que não engana, nunca. Se é de dia, fica de pêlo eriçado e duro, como arame, e mia duma forma muito particular; são dois miadinhos curtos e um comprido, dois curtos e um comprido; se é de noite, apenas bufa e lambe as barbas, ficando então o pêlo fosforescente, como vaga-lume. É claro, pois, que quem leva gato não corre o risco de ser surpreendido por tigre; muito antes deste aproximar-se já o caçador está avisado e tem tempo de sobra de preparar-lhe a espera.

Deste fato, creio mesmo que e que nasceu a expressão vulgar de que - quem não tem cão, caça com gato.

Com estas distrações e outros que fazeres, passou-se o tempo; de vez em quando e sempre com pesar e saudade, Lembrava-me da desaparecida Tetéia.

Dediquei-me então a ensinar um cachorrinho, filho dela, o seu retrato escrito e escarrado, que me havia ficado.

Há dias - meses passados - levei o cachorrinho ao campo, para exercício. E andando, andando, sem dar por tal, fui ter ao lugar certo daquela malfadada caçada em que se sumiu a minha maravilhosa perdigueira.

E, dum lado para outro, eis senão quando, o cachorrinho pára, amarra, levanta a pata, sacudindo a cauda! Chego-me, toco-lhe com o joelho, e quando espero que o totó vai levantar a perdiz, ele volta-se para mim, desarrumado, humilde, com os olhos arrasados de lágrimas... Surpreso, dei três passos, estiquei o pescoço e vi.

Vi, sim, o esqueleto da Tetéia ainda de coleira, firme, correto, na posição de amarrar; adiante, um esqueleto de perdiz, na posição de preparar o vôo; ao lado, num ninho quase desfeito, sete esqueletinhos de filhotes, na posição de piar, com fome!

Querem mais claro? E agora, cousa notável, foi ainda o faro filial que guiou o cachorrinho e fê-lo descobrir e chorar perante os ossos da mãe!

Pois, e então?

A cachorra do Münchausen será acaso superior à Tetéia? Só se for porque ele era um barão, e eu sou apenas o Romualdo.

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