A recolhida
A Revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul em seu número VII, de junho a agosto de 1911, publicou
"A Recolhida", de Simões Lopes Neto, como parte integrante de um livro escolar que estava no prelo.
Certa manhã, trepado na tronqueira do curral, esperava eu segunda guampa de leite, quando senti, ao longe, para o lado do campo, um tropear surdo e uns gritos muito conhecidos e do meu agrado. De mão no ar, com os olhos avivados, chispeando de alegria, apurei a atenção. - Orah!... Orah! Orah!... - Está ouvindo seu Juca? - Que é isto? Indaguei, adivinhando a resposta. - Ó! gaúcho maula! Está ouvindo e não sabe?!... - É recolhida? Temos rodeio? Quando?... E saltando de onde estava empoleirado, rápido arregacei as bombachas e atirei-me, a correr, para a mangueira grande, molhando os pés na grama fofa, borrifada de sereno. - Eh! espere aí, mocito! Tome a outra golada de apojo! É ordem de sia dona!... - Qual apojo, nem pera nada! Enveredei para a estradinha da cacimba, e, como topasse com a bandada de gansos, esparrameio-os, pulando e investindo, de braços levantados - para fingir de bicho esquisito -; e lá se foram eles, sacudindo as asas, bamboleando o pesado pescoço esticado, bico aberto, grasnando e chiando, zangados! Chegando à fralda da coxilha lancei à vista para o campo, a rumo do poente. Quanta beleza vi, que ainda não vira!... Por detrás de mim subia o sol e os meus olhos correndo com a luz,alcançavam até muito ao longe, sobre a verde extensão, suavemente ondulada. Nas canhadas distantes restava, suspensa, uma leve cerração; sobre os altos das coxilhas recortava-se muito bem o corpo de uma que outra rês, e das querências via-se pontas de gado movendo-se a passo,em fila, para as aguadas; no ar fino vinham berros de terneiros e mugidos de tourada, e latidos, gritos agudos dos quero-queros, em revoada, alarmados, enquanto que de muito alto, do céu sem nuvens, descia o grasnido estridente de um par de tahans, que voava sereno, sereno, em círculos largos. Perto, aos meus lados, cantavam os passarinhos nos galhos altos da quinta ou no chão, ao debicar semente ou junto dos ninhos, talvez ensinando os filhotes; cigarras ensaiavam trilos; nas ramas dos capins as teias de aranhas pareciam pequenas redes enfeitadas de continhas de vidro transparente, vermelhas, cor de ouro, roxas, azuis, verdes... tão lindas ficam as gotas da orvalhada trespassadas pela luz do sol, que vai subindo. Mas, dentre todos os rumores ainda o que melhor eu escutava eram os latidos do Violão e do Rajado, os dois cuscos tão meus amigos e os mais ativos vigias da estância; Lá andavam eles - au... au... au.!... - miudinhos, correndo, pulando, acuando aos matungos lerdos ou a alguma égua matreira que forcejava por cortar-se e disparar, de cola alçada! O tropel crescia, aproximava-se; era apenas uma massa confusa de corpos em correria, tropilhas e manadas, tudo disperso e isturado, seguindo os ponteiros, deixando um rastro largo no pastiçal acamado. Mais perto... então mais perto; já se acentuam pelos, tamanhos. Vem tordilhos, picaços, lobunos, colorados, baios, tobianos; vem potrancos, éguas, cavalhada, mulas; e grandes e pequenos, e até uma parelha de machos, da carroça e até uma petiça nambí que as vezes se pega para puxar arrastas de fachina. Assim chegava, num turbilhão, resfolegante, relinchando, a recolhida, tudo a galope, a galope, a galope! Já os peões apertam sobre a mangueira. Eu bato as palmas e corro, entusiasmado, para ajudar. A recolhida vai entrar; nisto os dois machos volvem a cabeça para o campo, trocando a orelha, farejando alto. - Vão disparar! Ataca!... Não vê!... Um dos campeiros já está de laço armado, outro balanceia as boleadeiras, pronto para o repente... - Orah! Orah! Orah!... E entrou na encerra a soberba animalada. Correm-se as varas da porteira; serena o tropel; os animais companheiros procuram-se; todos estavam molhados até os encontros; uns sacodem-se com violencia ou cheiram o chão, refolhando, e rebocam-se na terra revolvida e fresca; cruzam-se relinchos, coices, dentadas. Quase todas as cabeças, espantadas e curiosas, estão voltadas para a porteira; e na respiração ofegante e forte as ventas expelem rolos de vapor, do bafo; parece que os animais pitaram e estão atirando a fumaça dos cigarros! O capataz, que tem se aproximado dá as suas ordens à peonada, que retira-se. E voltando para mim: - Eh! amigo! Tens muito serviço de campo, agora? Não sei porque, mas no meio do meu contentamento - foi como um corisco! - de repente lembrei-me do colégio, do Mestrinho, da festa das bandeiras... E suspirei. - Ah! seu Juca! disse. Que bom que eu fosse peão da estância... campeiro, domador!... Só assim não iria mais para o colégio... Não é? O velho capataz deu dois últimos chupões à bomba, com esta revirou a erva na cuia e, vagarosamente, enquanto cevava um outro amargo, respondeu-me baixinho, porém muito sério: - Amiguito! Não diga barbaridades!... J. Simões Lopes Neto - (Do livro escolar "Terra Gaúcha", no prelo) Fonte: MOREIRA, Ângelo Pires. A outra face de J. Simões Lopes Neto : 1. volume. Porto Alegre : Martins Livreiro, 1983. 192p. | |